Uma análise psicodramática do luto
Edgar Weslei
Santos Aragão¹
Natan Reis Gomes²
O filme aborda o drama de Claire Simmons
(Jennifer Aniston), uma mulher vivenciando o luto da morte do filho que busca
ajuda em um grupo de apoio a pessoas com dores crônicas. Durante o processo,
ela se vincula com a história de vida de uma participante do grupo que acabou
se suicidando. Tentando descobrir um pouco mais sobre a vida da colega de grupo
e como se encontra a família da mesma após a perda, Claire, inconscientemente,
inicia o enfrentamento do próprio luto. Embora a morte seja um processo
inerente à vida, aceitar esta condição é sempre uma tarefa difícil. Neste
contexto, Perazzo faz referência à parábola do grão de mostarda, ilustrando esta
realidade:
A parábola da doutrina budista conta que uma mulher,
tendo aos braços o filho morto, acorre a Buda e suplica que o faça reviver.
Buda lhe diz que consiga em qualquer casa alguns grãos de mostarda que
devolverão a vida à criança. No entanto esses grãos terão que ser obtidos numa
casa onde nunca morreu ninguém. Esta casa não é encontrada pela mãe e ela
compreende uma das lições fundamentais do budismo: a de ter que contar sempre
com a morte. (Perazzo, 1995, p. 58).
Diante desta temática recorrente, nossa
protagonista pode muito bem representar o estado deprimido de homens e mulheres
que surgem nos consultórios, buscando respostas e alívio para sua dor diante de
uma perda. Um luto que acaba cristalizando o indivíduo, impedindo que o mesmo
encontre novas possibilidades, ou use sua criatividade para se adaptar e
resignificar a situação na qual se encontra.
Obviamente, nenhuma mãe espera enterrar
os seus filhos e Claire tem toda a sua vida transformada diante deste terrível
acontecimento. Após o acidente, ela se isola do mundo, tornando-se uma pessoa
amarga, intransigente, incapaz de perceber a continuação da vida à sua volta,
aprisionando-se dentro de sua própria casa, já que agora o mundo é um lugar
injusto e sombrio demais para se viver. Perder o filho foi perder a si mesma,
já que aparentemente não há mais ninguém a quem cuidar; a pessoa que
representava o centro do seu mundo desaparece, deixando uma lacuna em seu papel
complementar de mãe, tornando a tristeza marca adicional que acompanha as cicatrizes
deste acidente.
Se
o meio em que vivemos facilita o contato com a morte e contribui para a
elaboração do luto, as marcas, que sempre existirão, é claro, terão o curso
natural de uma cicatriz que se adelgaça e esmaece. Caso contrário, sem esta facilitação
e absorção social, tais acidentes permanecerão transferencialmente aprofundados
em nossas inter-relações com o outro no mundo dos vivos. (Perazzo, 1995, p. 142-143)
Desse
modo, este vazio prejudicou os outros papéis de Claire, seja o de mulher,
amiga, advogada, e tantos outros que foram afundados na dor deste luto
patológico, tendo em vista que, nossa protagonista se cristalizou no papel de
mãe enlutada.
Um papel é uma experiência interpessoal e necessita de dois ou
mais indivíduos para ser posto em ação. Todo papel é uma resposta a outro (de
outra pessoa). Não existe papel sem contrapapel. (Fonseca Filho, 1980, p. 20)
Ou seja, Claire não tem mais esta vinculação,
a troca, o retorno do afeto dirigido a seu filho, assim ela evita a todo o
tempo encarar o luto, silenciando a dor de sua perda com o uso de drogas e
tornando-se não apenas uma consumidora compulsiva de medicamentos, mas também
uma mulher insensível aos sentimentos das pessoas que lhe cercam, sabotando e
manipulando suas relações, afinal o conforto do entorpecimento é mais fácil do
que encarar a responsabilidade de criar novos papéis ou resignificar papéis
antigos.
Neste casulo que habita, a protagonista
ainda conta com o suporte e o cuidado de Silvana (Adriana Barraza), que passa a
ser mais do que sua simples secretária. Ela representa para Claire o ponto de
equilíbrio no qual pode se apoiar para encarar a sua realidade. É ela quem
dirige o carro enquanto Claire, sempre debruçada no banco do carona, resiste
ter coragem de olhar para o mundo que existe do lado de fora. Ela é a amiga, a
mãe, a protetora, que assume a responsabilidade de suportar a amargura de
Claire e lhe fazer companhia, após ela ter abandonando a tudo e a todos,
inclusive o seu próprio casamento. Esta cuidadora vem representar o apoio que
Claire necessita, possibilitando algumas vezes que a rede de suas relações se
reestabeleça.
Outro personagem importante que sempre
está contracenando com Claire, contribuindo de algum modo com a elaboração do
luto, é Nina (Anna Kendrick). O contato com ela no grupo de apoio e,
consequentemente, com o seu suicídio, fez com que Claire se deparasse com os
seus próprios conflitos e ideação suicida. A partir daí o suposto “espírito” de
Nina passa a atormentá-la em todos os lugares, alfinetando, provocando e
questionando algumas atitudes dela, representando simbolicamente o seu
inconsciente, a parte mais sombria de sua psique.
Um dos diálogos significativos ocorre
quando Nina aparece no hospital levando um bolo de aniversário com cobertura
branca e algumas velas amarelas para o quarto de Claire, no tempo 1:14:54’ o
diálogo expõe um aspecto importante:
Nina – Faça um pedido.
Claire – Não consigo pensar em
nada.
Nina – Isso não importa, assopre
as velas.
Jung
traz a ideia de sombra como sendo “a parte negativa da personalidade, isto é,
a soma das propriedades ocultas e desfavoráveis, das funções mal desenvolvidas
e dos conteúdos do inconsciente pessoal” (2007b, p. 58). Ou seja, se tomarmos Nina como a projeção
simbólica da sombra de Claire, podemos aferir que, ao assoprar as velas e ver
Nina se jogar da janela do hospital com o bolo, Claire entra em contato com a
própria ideação suicida.
O desfecho do filme traz uma
representação muito forte da aceitação, o caminho de cura para a protagonista.
A cena é bem simples, mas potencialmente simbólica. É quando ela se ergue para
a vida, permitindo-se, mesmo diante dos desafios, criar saídas e ser espontânea
para conduzir sua vida por novos caminhos.
Só
mesmo a elaboração do luto, o enterro interno desses mortos, torna possível sua
transformação em apenas memória, de modo que o afeto dela decorrente não se
torne um impedimento para o desempenho dos diversos papéis que a vida a todo
instante nos oferece. (Perazzo, 1995, p. 126).
Concluindo
com esta citação, não poderíamos deixar de dizer que esta obra cinematográfica
é cheia de possibilidades para análises diversas, pois possui uma riqueza de
temáticas em seu enredo a serem abordadas, seja a relação conjugal, a
maternidade, terapia de grupo, suicídio, vícios, depressão, o desempenho de
papéis, ou mesmo o luto patológico que foi a temática protagonista desta
análise.
Referências:
FONSECA FILHO, J. S. Psicodrama
da Loucura. Correlações entre Buber e Moreno. São Paulo: Ágora, 1980.
JUNG, C.G. (2007b) Psicologia
do Inconsciente. Petrópolis, Vozes.
PERAZZO,
Sérgio. Descansem em paz os nossos
mortos dentro de mim. São Paulo: Agora, 1995.
Ficha técnica:
Título
original: Cake
Distribuição: California Filmes
País: Estados Unidos
Gênero: drama
Ano de
produção: 2014
Duração: 92 minutos
Classificação: 14 anos
Direção: Daniel Barnz
Roteiro: Patrick Tobin
Elenco:
Jennifer
Aniston
Sam
Worthington
Anna
Kendrick
¹Graduando do curso de
Psicologia da Faculdade Santíssimo Sacramento.
²Psicólogo e pós-graduando
do curso de especialização em Psicodrama pela PROFINT.